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Reintegração de posse junho 20, 2023

Posted by flaviodamiani in Catolicismo, Comportamento, Cotidiano, Crônicas, Humor, Religião, Sociedade.
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Estava tudo no seu lugar, a árvore erguida no canto da sala, aquele que todos visualizam quando descem a escadaria em direção à cozinha. Bolas coloridas, lamparinas, enfeites da liquidação do natal passado, mas ainda sem uso, portanto, novos. Não tinha chumaço de algodão porque com o calor de 40 graus ficaria ridículo por neve no pinheirinho. O presépio já estava completo sem os reis magos que só virão no janeiro, andam resolvendo questões políticas envolvendo o Tramp e o Oriente Médio. Recém eu havia instalado as luzinhas, prontas para serem testadas quando um personagem fora do contexto quebrou a harmonia do ambiente. No galho mais alto, disputando espaço com a estrela de Belém, estava um pássaro marrom. Um sabiá laranjeira com ar arrogante tomou posse da árvore que tanto trabalho deu para chegar onde está, desde a longa fila no Black Friday das Americanas para aproveitar o desconto, fazer com que ela coubesse no carro, até o quebra cabeça para juntar todas as peças e montá-la de acordo com as instruções. Esta ousadia não passaria em branco, não sairia barato.

Gentilmente, sob a mira de uma vassoura, o convidei para sair de onde estava e voltar para o seu lugar, o bosque nos fundos de casa onde, aliás, todas as manhãs ele recebe ração e cascas de frutas picadas, gentilmente oferecidas pela casa aos seus irmãos, filhos e parentes. Na primeira tentativa não houve acordo, e numa visível manobra provocativa, desceu dois galhos e se posicionou na parte de trás, estrategicamente, com as costas protegidas pela parede, de forma que se houvesse qualquer reação, o ataque só poderia vir de frente. Era um claro sinal de que haveria luta na reintegração.

Teve um alerta inicial pra que ele abandonasse o front, foi uma sacudidela na árvore como forma de deixá-lo ciente sobre as consequências desta sua atitude impensada. A segunda tentativa foi um pouco mais desastrosa, a árvore vergou e só não foi ao chão porque um balcão, modelo cômoda, amparou o peso. No emaranhado vi que o sabiá ficou enroscado porque bateu as asas e não voou. Senti que ali estava a grande oportunidade para acabar de vez com a teimosia antes que ele acabasse com o meu natal. Mas, sem aceitar qualquer acordo, aquele monte de pena se embrenhou sorrateiramente nos galhos mais retorcidos tornando praticamente impossível arrancá-lo a força sem destruir a sala, a árvore e todos os acessórios.

Impotente e sem alternativas resolvi apelar para o pelotão de choque. Conectei as luzinhas na tomada, torcendo para que funcionassem, e cerquei a área agora com o reforço de um rodo e meus dois cachorros. Não haveria escapatória, seria o ataque final já prevendo baixas. Quando as luzinhas piscaram, os cachorros latiram, o rodo e a vassoura se posicionaram num elaborado plano de ataque, tal qual um míssil avançando na direção do alvo inimigo. Sisudo, ergueu a cabeça e num impulso desocupou o território, deixando felpas da sua camuflagem, o que valorizou a luta.

Esfarrapado se instalou no caramanchão, ajeitou o fardamento e desapareceu.

Juntei as penas como troféu e recoloquei a árvore no seu lugar, fechei a janela para evitar um possível retorno inimigo que poderia ser em marcha acompanhado de comparsas. Peguei o chimarrão e me sentei perto do menino Jesus que estava agitado, assustado com toda aquela confusão sobre o seu berço. Só sobrou ele ileso no presépio em pandarecos. O resto do pinheirinho de Natal era frangalhos.

LADAINHAS, NOVENAS E CAPITÉIS abril 25, 2023

Posted by flaviodamiani in Cotidiano.
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É o que dá entrar no facebook sem estar preparado para tanta informação inútil de maneira nada aproveitável. O ócio campeia nas redes sociais e o ódio é apenas uma forma de acobertar a covardia daqueles que não tem coragem de falar em público. Sim, as redes sociais são públicas, mas também são privadas para quem quer se esconder por detrás de uma tela golpeando o teclado, espargindo toda a raiva e o veneno de quem não foi convidado para entrar, mas que também não tem a menor intenção de sair.

São nômades a procura de um lugar seguro para acomodar a caravana. São ricos, pobres, depressivos, hiperativos, ladrões, bandidos, beatos, honestos, íntegros ou safados, bem ou mal educados, que se empoderam de uma ferramenta democrática que compartilha amores, desamores, paixões repentinas, declarações, assuntos sérios e besteiras, na ânsia de levar o mais longe possível, atingir o maior número de internautas na esperança de que leiam longas, repetidas e desanimadoras ladainhas bem como pedem para compartilhar suas novenas com intenção de agradar aos santos, os arcanjos e os querubins e realizar seus desejos solicitados durante promessas fervorosas feitas com devoção no capitel* de cada estrada.

O facebook acima de tudo é um lugar para extrapolar, judiar, jurar, amar ou tripudiar e pedir desculpas. Pode acomodar a mais pura inocência ou acobertar a mais cruel ameaça e o mais brutal dos crimes.

O que não se quer dizer cara a cara se diz no face, lugar sagrado, onde o bem e o mal disputam o mesmo pedaço da fama.

MEDO DAS RUAS abril 24, 2023

Posted by flaviodamiani in Cotidiano.
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(Flávio Damiani e Grupo de Choro & Cordas de São Luis MA)

Hoje a cidade acordou assim

Com medo da inversão dos papéis

Do mundo lá fora coberto de espinhos

Na cidade grande me senti sozinho

E esta manhã tão linda despertou em mim

A sensação de não ter a liberdade

Como um pássaro que não voa

Preso pelas grades invisíveis da cidade.

Hoje o dia amanheceu assim

De avenidas brilhantes, pátios cinzentos

Hoje não sai de casa

Com medo de não voltar

Hoje o dia anoiteceu assim

Faíscas iluminando o trânsito

Eu não fui às ruas que já foram minha

Que já foram tua, em dias de sol, em noites de lua

(Bis)

As ruas que já foram minha, que já foram tua

Em dias de sol, em noites de lua.

O MASSACRE DAS CHUTEIRAS abril 24, 2023

Posted by flaviodamiani in Cotidiano.
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É o palco de tudo, é o tapete do futebol, é onde todos sonham pisar. Sim, a começar assim; pisado, cuspido, escarrado…

A sensível e indefesa grama é arrancada pelas travas das chuteiras de homens insensíveis ao que ela representa para eles. Ela amacia seus tombos, protege a bunda, as canelas, os joelhos, braços e cotovelos, ela é uma protetora natural que não faz parte do fardamento.

O gramado amacia o passo, define a velocidade da bola rasteira e traça os limites do campo. É xingado como se fossem culpados quando o campo acaba e a bola sai para a lateral.

No intervalo é espetado por ganchos de ferro golpeados por mãos rudes e carniceiras que rasgam sulcos preenchendo a ferida com punhados de terra ou areia. Depois recebe violentos impactos produzidos pelos pés do carrasco que também é dono das mãos que abriram chagas sem dar o mínimo de atenção para a dor que deve sentir a pobre e inocente grama esmeralda. E na hora do pênalti o gramado é arrancado pelas garras do batedor, ou afundado pelos pés e calcanhares do adversário.

Antes da partida é aparado, molhado e nas noites sem jogos vira a casa da luz vermelha. O gramado não tem sossego, mal recupera a suas folhas fraturadas pelas chuteiras dos craques, dos nem tão craques e dos que judiam da bola, e logo é submetido aos novos desafios do futebol que coloca em campo o perverso movimento que amassa, rasga, desfolha e desarruma a vasta cabeleira da bela e sofredora esmeralda.

Só tu para suportar este massacre, preservando o espetáculo que é a arte de jogar bola, que ironicamente fica mais belo às custas do teu sofrimento. Como tantos, me rendo aos gramados que nada tem a ver com o lado obscuro da cartolagem. Alheio a tudo, o tapete verde cumpre a sua missão de oferecer conforto e segurança à molecada que, em reconhecimento, deita e rola malandragem.

O Pato do primeiro ao quarto ato maio 31, 2022

Posted by flaviodamiani in Artes, Comportamento, Cotidiano, Crônicas, Educação, Filosofia, Frases, Humor, Poesia, Sociedade.
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Ele não me pareceu sensato

Nasceu quebrando a casca do ovo

Saiu pelo pátio de pés descalços

E nunca quis usar sapato

Final do primeiro ato.

O pato cresceu no pátio

Era um sujeito carismático

Bonachão e até simpático

Mas era sorumbático

Final do segundo ato.

Achou que podia voar feito passarinho

Subiu na árvore para fazer um ninho

Mas despencou lá do alto

Porque todo pato tem pé chato

Final do terceiro ato.

No quarto e derradeiro ato, resolve ser matemático

Vai à escola para aprender fazer contas

Mas toma gosto por leitura, português, literatura

Aí o pato dramático, problemático, simpático, carismático, sorumbático…

Assumiu um estilo didático e virou gramático.

Estranho no ninho maio 31, 2022

Posted by flaviodamiani in Comportamento, Cotidiano, Crônicas, Humor, Política, Sociedade.
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“Resolve a tua parada e depois conversamos ô pinto mole.”

Foi o que ouvi saindo de um sushi no bairro dos Jardins zona oeste de São Paulo.

A mulher e o homem discutiam a relação, sentados sobre uma floreira.

Ele estava de cabeça baixa, talvez por vergonha ou quem sabe mirando a braguilha esperando por um milagre.

Pensei em voltar e sugerir a possibilidade dele cerrar fileiras no exército brasileiro, explicar que lá tem tudo o que ele precisa, de prótese a gel lubrificante.

Resolvi ficar na minha e não tentar um acordo. Aprendi que em briga de marido e mulher não se mete a colher. Vai que a colher é de pau?

Gaúcho raiz em Floripa maio 20, 2022

Posted by flaviodamiani in Cotidiano.
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O motorista do Uber encosta no Mercado Público, no Centro Histórico, para fazer o trajeto até a Lagoa da Conceição. Trajeto demorado, propício para uma boa prosa.

Gurizão tatuado com a aba do boné do avesso. Ao notar que eu sou gaúcho foi se apresentando:

– Sou de Sapucaia do Sul.

Também foi reclamando a falta de carne boa pra churrasco em açougues da ilha.

– Saudade de um churras raiz, disse ele, já reparando que não tem nenhuma churrascaria em Floripa, coisa que eu não tinha me dado conta.

– Não tem?

– Não, se quiser tem que fazer em casa.

– Churrasco raiz, como você diz.

– Sim, não uso sal grosso, aliás nem uso sal, vou de chimichurri

– Pra temperar, só o chimichurri?

– Algumas vezes abro mão do preconceito e também uso barbecure

– Preconceito?

– Dos amigos, não gostam de molho na carne.

– A carne deve ser Short Ribs ou não?

– Acém…

– Acém cai bem?

– Ô! Não tem melhor.

O lero segue e chego em casa enjoado com as múltiplas combinações do churrasqueiro raiz, que vão desde o caldo de banana verde com patas de siri ao inacreditável pirão a bucica, cujos o ingredientes me recuso a nominar, mas que é recomendado para cadela prenha em final de gestação.

Me dirijo ao freezer e pego uma coca, meu estômago pedia um arroto.

POR UM INSTANTE, MENDIGO abril 12, 2022

Posted by flaviodamiani in Cotidiano.
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No estacionamento vi uma mulher, tipo Julia Roberts nos anos 80, explicitamente descontrolada. Carregava um celular na mão e pedia explicações para alguém que estava dentro de um carro:

– Quem é esta pessoa??? me diz, senão eu cometo uma loucura…

De dentro do carro um homem resmungava.

Ela gritava aos infernos e prometia:

– Se você não me disser quem é eu agarro e beijo o primeiro homem que encontrar.

Olhei pros lados e constatei que eu reinava absoluto no pedaço. Até baixei a máscara e levei um chiclete à boca para aprimorar o hálito.

Foi então que o mendigo aquele que pegou a mulher do personal trainer e foi flagrado fazendo sexo com ela dentro do carro do marido, baixou em mim.

O homem desceu e pediu para ela parar com o escândalo

– Não paro, eu quero explicação, esbravejou jogando o telefone contra ele e reafirmando que ia cumprir a promessa do beijo.

O cara era um bombado e ela uma possuída. Biceps do Rambo e coxas do Lula na foto com a Janja.

Deixei meu assanho de lado e pensei… hoje não tou pra briga, e vazei.

FALTOU SINTONIA abril 12, 2022

Posted by flaviodamiani in Cotidiano.
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No estacionamento do supermercado um casal discutia com a janela do carro aberta e casualmente o carro deles estava ao lado do meu.

Me liguei quando ouvi a mulher dizer:

– Mas eu não entendi o que você queria, você não deu sintonia.

– Eu tava afim de ti.

– Mas eu não entendi tua amarração, ficou mocozado por que que não chegou chegando?

– Me atirando?

– Te liga, quem tá afim de matar atira primeiro.

Antes que os oponentes puxarem as arma e entrassem em luta corporal no próprio carro, procurei me afastar do conflito.

A MULHER DA AVON abril 12, 2022

Posted by flaviodamiani in Cotidiano.
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De repente a tela da cerca se mexeu e o cachorro latiu de dentro de casa. Fui conferir e vi uma mulher no pomar, no pé de romã.

Disse a ela que poderia ter pedido romãs, não precisava pular a cerca.

Ela respondeu com uma pergunta;

– Pra que pedir se eu posso pegar?

Fiquei Putin com o que ouvi e pensei numa declaração de guerra, afinal, o meu poder de fogo era maior que o dela. Ela tinha uma valise de oncinha, daquelas compradas no camelô e eu tinha um cachorro.

Convidei para que se retirasse por bem, propus uma trégua e fui acionando o portão da garagem, evitando o confronto.

Ela retirou-se zombado de mim e ironizando o meu cabelo ao dizer:

– O que eu poderia esperar de alguém que não usa condicionador…

Por um momento pensei que ela deveria ser partidária do Zelensy, o presidente piadista da Ucrânia ou, quando muito, representante da Avon, sim, com aquela valise Pantanal tudo é possível.

Mas assim que se acalmarem os ânimos, no pós-guerra do quintal, vou entrar com representação no tribunal internacional. Quero que ela explique a parte do condicionador.